tá aí meu trabalho mais antigo e que mais perdurou. 16 anos, precisamente, entre a filmagem e a finalização. um rapha de 13 anos, em dezembro de 2007, com uma Sony na mão. nunca tive coragem de reproduzir a receita, como não tive de tocar nesse material por tanto tempo.
dormi todos esses anos na certeza mais concreta possível de que eternizar um desaparecimento era demais pra mim. eternizar o encantamento era tarefa árdua. muito embora eu não entendesse isso, mas reconhecesse de algum jeito, na insustentável dor de que todo ser humano nasce com sensibilidade ao olhar a inexistência ou a iminência à ela. tá feito: últimas imagens que tenho da minha avó.
gosto muito dos atravessamentos da memória, túnel de papel crepom e linho, conectando mundos. espaço amorfo, todo engalfinhado, estômago de gato: onde a morte não ousa tocar. nessa memória, sinto o cheiro daquela pimenta até hoje. e vou me permitindo ficar à vontade em permanecer nesse lugar de olhar o mundo, de história em história, me misturando com os recortes que me fazem levantar da cama todo dia, me olhar no espelho e simplesmente lembrar. lembrar como se todo o meu corpo e minha vida dependesse não do que há por vir mas do que me trouxe até aqui.
e reparar, embaixo do gesso rebaixado do banheiro, da luz que emoldura o espelho delicadamente colado no azulejo branco, sobrevoando as pontas dos cílios, as minhas mais profundas certezas e dúvidas sobre o que vive e o que morre, sobre esse fim que não termina, mas que é em si - sempre - uma espécie de recomeço.
dormi todos esses anos na certeza mais concreta possível de que eternizar um desaparecimento era demais pra mim. eternizar o encantamento era tarefa árdua. muito embora eu não entendesse isso, mas reconhecesse de algum jeito, na insustentável dor de que todo ser humano nasce com sensibilidade ao olhar a inexistência ou a iminência à ela. tá feito: últimas imagens que tenho da minha avó.
gosto muito dos atravessamentos da memória, túnel de papel crepom e linho, conectando mundos. espaço amorfo, todo engalfinhado, estômago de gato: onde a morte não ousa tocar. nessa memória, sinto o cheiro daquela pimenta até hoje. e vou me permitindo ficar à vontade em permanecer nesse lugar de olhar o mundo, de história em história, me misturando com os recortes que me fazem levantar da cama todo dia, me olhar no espelho e simplesmente lembrar. lembrar como se todo o meu corpo e minha vida dependesse não do que há por vir mas do que me trouxe até aqui.
e reparar, embaixo do gesso rebaixado do banheiro, da luz que emoldura o espelho delicadamente colado no azulejo branco, sobrevoando as pontas dos cílios, as minhas mais profundas certezas e dúvidas sobre o que vive e o que morre, sobre esse fim que não termina, mas que é em si - sempre - uma espécie de recomeço.
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[ENG]
Here it is—my oldest and longest-lasting work. Sixteen years, precisely, between filming and completion. A thirteen-year-old Rapha, in December 2007, with a Sony in hand. I never had the courage to recreate the recipe, just as I never dared to touch this material for so long.
I slept through all these years with the most concrete certainty possible that eternalizing a disappearance was too much for me. Eternalizing enchantment was an arduous task. Even though I didn’t understand it, I somehow recognized it in the unbearable pain of knowing that every human being is born with the sensitivity to see nonexistence—or its looming presence. And now it’s done: the last images I have of my grandmother.
I love the way memory weaves through things, a tunnel of crepe paper and linen, connecting worlds. An amorphous space, all tangled up, like a cat’s stomach—where death dares not touch. In this memory, I can still smell that pepper. And I allow myself the comfort of staying in this place, of looking at the world, story by story, blending into the fragments that get me out of bed every morning, make me look in the mirror, and simply remember. Remember as if my entire body and life depended not on what’s to come, but on what has brought me here.
And to notice—beneath the lowered plaster of the bathroom ceiling, in the light that delicately frames the mirror glued to the white tile, hovering over the tips of my eyelashes—my deepest certainties and doubts about what lives and what dies, about this ending that never quite ends, but is, in itself—always—a kind of beginning.
