poderia ser sábado. ou domingo. o sol da manhã pela cortina translúcida invadia o quarto e acendia o chão recém-sintecado. os pés deslizavam pelo lençol, alcançavam o chão frio. erguia o torso, me sentava na cama. um burburinho cruzava o corredor e me atraía pra cozinha. vozes rindo, bem alto. alguma música tamborilava pelo som Aiko recém atingido por uma bola da Penalty. cruzava do quarto pro banheiro. me posicionava na frente do vaso santista e lia a assinatura do artista plástico que tinha feito os azulejos azul com pequenas árvores e bolinhas brancas ao entorno. Ueleufueilo. Weleufiul. muitos anos depois fui descobrir o real nome do artista, Valentim. descia o corredor, me guiando de olhos semi-cerrados até as vozes que se cutucavam em monólogos e risadas. a saída do corredor me entregava pra sala quadrada. a sala mais sala que conheci. meus pés pisavam os primeiros tacos do cômodo e as duas figuras descansavam num aparador antigo, com contornos divertidos laterais e uma lâmina de vidro verde. o velho descansava no contra-luz, consumido pelo silêncio do bronze, erguido numa pedra brilhosa, lapidada por marteladas grosseiras. a mulher, elevada sobre o vidro, emanava uma luz calma, rosácea, com suas dobras, se contornando em si própria. o velho, soturno, guardava sob as pálpebras um ruído, um uníssono que atravessava aquela manhã, uma pressa, um sentimento misto prazeroso e ansioso. a mulher, não. trazia sua própria delicadeza, sua densidade quase inexistente. ambas as figuras flutuavam, enquanto eu - apoiado no balizar da porta -, de costas pras vozes que me chamavam, cravava minha curiosidade nelas. quis o destino que o destino das duas peças, por tantos anos guardadas da vista, obras do meu pai e da minha mãe, viessem me buscar na minha casa, vinte e muitos anos depois da cena. vinte e muitos anos depois dessa manhã, que se repetiu vagarosamente por tantos anos. quis o destino que essas manhãs ensaiassem novas formas em outro lugar, em outro espaço-tempo. quis eu ser marcado por essas peças no meu tempo, sob a luz tênue das manhãs e das gargalhadas ritmadas. as peças são 'o velho' do @luizfelipeboueri e 'o busto em resina' da @reginareisfotografia

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